A Praça Ary Coelho, no coração da capital sul-mato-grossense, é diariamente atravessada por centenas de pessoas — mas para outras dezenas, ela é o próprio destino. Para quem vive em situação de vulnerabilidade social, o local é abrigo improvisado, espaço de convivência forçada e, sobretudo, o único lar possível diante do abandono do poder público.
A reportagem percorreu a praça em uma manhã fria de 15 de junho e conversou com algumas dessas pessoas, que relataram suas histórias com franqueza e emoção.
“Essa Campo Grande não é mais a da minha infância”
Zé Milton, de 61 anos, observa o centro da cidade com ar melancólico.
“Eu nasci aqui. Essa cidade era rica, limpa, tinha emprego pra todo mundo. Hoje tá cheia de prédio e cheia de miséria. Essa Campo Grande não é mais a que eu conheci quando era moleque.”
Morando na rua há mais de três anos após perder o emprego como porteiro, ele sobrevive com reciclagem, mas relata que até isso tem se tornado mais difícil:
“A gente disputa latinha com todo mundo agora. Tem gente nova todo dia.”
“Mesmo doente, não deixo faltar a pensão do meu filho”
Conhecido entre os demais como Perninha, por conta de uma antiga lesão, ele vive entre bicos, o consumo de substâncias e a saudade.
“Tenho problema, sim. Com bebida, com pedra. Mas meu filho não tem culpa disso. Todo mês dou um jeito de mandar a pensão. É pouco, mas é de coração. Sinto uma falta danada dele. Mora lá em Sidrolândia. Meu sonho é ver ele de novo.”
A fala é carregada de emoção, revelando um senso de responsabilidade que resiste, mesmo diante das adversidades da vida na rua.
Disputa por abrigos e a convivência com os imigrantes
Nos dias frios, a busca por um abrigo se torna ainda mais urgente, mas as vagas nos albergues municipais são, segundo os entrevistados, insuficientes.
“Quando a gente vai, já tá cheio. Tem muito haitiano, muito venezuelano. A gente entende, né? Quem tem criança precisa mais ainda. Criança não pode pagar pelos erro dos adulto”, comenta Carlos, 52 anos. “Mas às vezes a gente pensa: e quem nasceu aqui? Será que não tem mais lugar pra nós também?”
As falas são permeadas por um misto de solidariedade e frustração. As pessoas compreendem a gravidade da situação enfrentada pelos imigrantes, mas se sentem deixadas para trás por uma política de acolhimento que, para elas, é seletiva.
Deputada Camila Jara comenta demandas
Durante o ato em solidariedade ao povo palestino, realizado no último domingo (15) na própria Praça Ary Coelho, a equipe de reportagem aproveitou a presença da deputada federal Camila Jara (PT-MS) para levar até ela as queixas relatadas pelas pessoas em situação de vulnerabilidade social que vivem no local.
Jara demonstrou preocupação com a situação e afirmou que os abrigos e programas de acolhimento têm enfrentado desafios logísticos diante da crescente demanda. “Sabemos que há sobrecarga nos centros, e por isso estamos buscando parcerias. Precisamos de uma resposta integrada, que trate desde a saúde mental até a capacitação para o trabalho”, afirmou.
Ela também destacou que, no caso dos imigrantes, muitos chegam ao Brasil com formação técnica ou superior. “Temos médicos, engenheiros, professores. Essas pessoas podem ser reinseridas rapidamente no mercado, o que facilita o processo de acolhimento. Já no caso das pessoas que estão nas ruas há anos, com histórico de dependência, abandono e traumas, o trabalho precisa ser mais profundo e cuidadoso.”
Um cotidiano de espera
Enquanto os discursos políticos tentam encontrar solução para problemas estruturais, o tempo passa de forma crua para quem vive nas calçadas. A saudade de casa, o medo do frio e a luta por dignidade marcam cada dia na praça.
Como disse Perninha, ao fim da conversa depois de pedir um cigarro à equipe de reportagem: “Ninguém escolhe isso aqui. Mas a gente ainda ama, ainda sonha. A praça é o que sobrou pra quem não tem mais onde cair vivo.”